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Cuiabá, 12 de Maio de 2024
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02 de Março de 2012, 09h:01 - A | A

OPINIÃO / RINALDO SEGUNDO

O MP e a cultura da impunidade

RINALDO SEGUNDO



Tenho participado de alguns eventos aqui em Harvard relacionados ao MP e aos problemas brasileiros. Na última semana, participei de um evento de direito comparado que, acho, merece divulgação. A mesa de discussão do evento, em que participei junto com outro promotor de justiça da Coreia do Sul, teve o título “Procedimento criminal e diferenças culturais: uma conversa com promotores do Brasil e da Coreia do Sul”. O evento foi organizado pelo programa de estudo de direito internacional e comparado da Faculdade de Direito de Harvard. A ideia do evento era discutir as características das instituições (Ministério Público) nos dois países além de alguns arranjos legais e constitucionais dos sistemas criminais de tais países.

O evento merece divulgação não pela minha presença, mas para evidenciar como alguns desafios que temos em relação à superação da violência e impunidade assim como à aplicação do direito indistintamente requerem a superação de uma cultura de impunidade que existe no nosso Brasil. Apesar da estrutura das instituições Ministério Público poder variar entre países, existem características institucionais comuns entre Brasil, Coreia do Sul além dos Estados Unidos. Tais características são vistas como necessárias para a promoção de uma justiça penal efetiva. Alguns exemplos e características similares de Brasil, Coreia do Sul e Estados Unidos são as seguintes:


1. A vinculação do promotor de justiça aos interesses da sociedade (leia-se: o cumprimento da lei) e não aos interesses do Estado (leia-se o governante de plantão). A ideia de que tais interesses, o da sociedade e o do Estado, podem divergir e que o membro do Ministério Público deve perseguir a regra da lei é comum.

2. A necessidade do agente do Ministério Público investigar criminalmente, especialmente quando diante de casos de crime organizado ou quando o investigado é um agente político ou policial, é aceita não apenas no Brasil. A Coreia tem um modelo semelhante e os Estados Unidos, um modelo até mais amplo que o brasileiro no sentido de que o Ministério Público pode inclusive exercer o controle direto de investigações policiais. O Brasil ainda tem um diferencial em relação aos demais países: a possibilidade de investigação civil para a promoção de direitos difusos e coletivos.

3. A independência funcional, com o afastamento de qualquer influência política, é vista como um dado para que o Ministério Público possa buscar o cumprimento da lei nos 3 países. Atuação técnica requer um Ministério Público independente.

Os três países possuem também garantias constitucionais procedimentais e materiais, leis infraconstitucionais e/ou interpretações jurisprudenciais que vedam a prática de tortura, promovem o respeito ao devido processo legal e delimitam os direitos civis como limites à investigação criminal. O princípio da inocência também é reconhecido nos três países.

A grande diferença entre os 3 países está no tempo de duração de um procedimento criminal. Um processo complexo (crime organizado e homicídio) na Coreia não dura mais que 2 anos. Os Estados Unidos (e a Inglaterra também) tem uma justiça rápida que se opõe à demora dos processos criminais brasileiros. Na Inglaterra, por exemplo, um processo de furto demora em média menos de um mês para ser resolvido.

Não é a formalização e burocratização dos procedimentos, a falta de investimentos e tecnologia e a ausência de institutos jurídicos inovadores que explicam a nossa “demora processual”. É a cultura da impunidade, de existência imemorial e de formatação colonial, que explica a formalização e burocratização dos procedimentos etc...

Mas por quê essa cultura da impunidade continua a existir em uma democracia em que todos são iguais perante a lei? A minha explicação é que a proteção da “casta” social brasileira mais abastada política, social e economicamente ainda é natural e “necessária” em função de nossas ainda imensas desigualdades e autoritarismo históricos. Se o indivíduo ou a família possuem poder de qualquer natureza, eles têm mais possibilidades de manejar os efeitos adversos da criminalidade causados às vítimas de quem não têm qualquer poder (carro blindado, condomínio fechado e filho estudando no período diurno são exemplos da redução à exposição da violência quando se tem poder; plano de saúde e escolas bilíngues minimizam os efeitos nocivos da corrupção sobre o grupo social mais abastado).

Mas isso não é o suficiente. É preciso também manejar os efeitos adversos da criminalidade àqueles que podem ser autores de atos de corrupção ou violência e “que não podem ser punidos”. Como fazer isso? Uma possibilidade é a diferenciação explícita, por exemplo, nos diferentes foros por prerrogativa de função. Uma segunda possibilidade, mais atraente pela sua aparência de igualdade, é não diferenciar os indivíduos por si (todos então são iguais perante à lei), mas sim, diferenciá-los através de suas “possibilidades de acesso e manejo” do sistema judicial. Novamente, aparece o elemento poder diferenciando os indivíduos.

Tais “possibilidades de acesso e manejo” do sistema judicial representam tudo o que o dinheiro pode comprar. É claro, assim, que esse “instrumental da impunidade” está acessível apenas a poucos e “bons”. Fartura de recursos e interpretações jurídicas que reafirmam e reproduzem a histórica cultura da impunidade são alguns daqueles instrumentais. Prescrição e favores lícitos e ilícitos são as cerejas do bolo ao ampliar as “possibilidades de acesso e manejo”. Os resultados são impunidade, violência e mais incentivo à criminalidade.

No evento em questão, defendi duas medidas que poderiam reduzir o incentivo à criminalidade e reduzir a violência e corrupção no Brasil. Essas medidas representariam um duro golpe na cultura da impunidade. A primeira delas é a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional que limita os recursos aos Tribunais Superiores (põe fim ao efeito suspensivo dos recursos após a decisão de segundo grau). A segunda é a reversão de entendimento do Supremo Tribunal Federal de 2008, segundo o qual a execução antecipada da sentença criminal viola o princípio do devido processo legal e da inocência.

Como dito acima, Brasil, Coreia do Sul e Estados Unidos reconhecem o princípio do devido processo legal e a presunção de inocência. No entanto, a interpretação do princípio em tais países é diferente. De um lado, o Brasil e a sua interpretação da inocência e do devido processo legal que estimula a libertação cotidiana de criminosos graves, do qual o Pimenta Neves e o Maluf são apenas os exemplos mais simbólicos e visíveis de violência, corrupção e impunidade. Do outro lado, Estados Unidos e Coreia, que com os mesmos princípios, possibilitam a antecipação da sentença criminal em crimes graves.

A geração da cultura da impunidade é antiga. A sua manutenção é uma opção. A cultura da impunidade se reafirma modernamente através de instrumentais e interpretações jurídicas rebuscadas. Ainda assim, ela não resiste aos dados. Dos cinco mil recursos criminais no Supremo Tribunal Federal em 2010, apenas um resultou na absolvição do Réu. Todos os demais serviram apenas para reafirmar a “cultura da impunidade”. E uma sentença criminal, parafraseando o Presidente do Supremo Tribunal Federal, que poderia ser produzida em cinco ou dez anos, demorará vinte anos. O efeito, muitas vezes, será a prescrição. O prêmio, todos já estamos cansados de saber qual será. Que o Ministério Público e a Sociedade Brasileira possam continuar a mobilização para a mudança da cultura e do instrumental da impunidade existentes em nosso país!

(*) RINALDO SEGUNDO é promotor de Justiça, bacharel em direito (UFMT) e mestrando em direito (Harvard).

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